O malandro e o otário
Precificar (e negociar) meu próprio trabalho é a tarefa mais difícil do meu dia
Todo dia sai um malandro e um otário de casa para fazer negócios. Talvez esse seja um ditado nacional, talvez esse seja um ditado tipicamente carioca, mas todo dia ele me assombra. Será que hoje eu fui a otária ou a malandra ao sair de casa?
Essa sensação de ser passada para trás é apenas um dos sentimentos conflitantes na hora de precificar meu trabalho. São muitas dúvidas que vêm à tona. Eu sempre falo que a parte mais fácil do meu dia é desenhar, enquanto a parte mais difícil é mandar orçamento. Estarei cobrando justo? Será muito? Será pouco? Estou me valorizando?? Estou me desvalorizando? O cliente vai responder esse email? Quantos orçamentos não aprovados até eu morrer de fome?? Esse preço vai compensar o estresse de 12 rodadas de alteração??? São muitas perguntas que reviram a cabeça.
Na minha família, dinheiro sempre esteve ligado a sentimentos ruins. Venho de uma família de pão-duro. Trabalhar significa dinheiro. Dinheiro significa sobrevivência. Ou ainda: dinheiro significa sofrimento. Minha bisavó foi uma pessoa negra escravizada, então no próprio legado da minha família dinheiro está ligado a sofrimento e à exploração. Eu vou além e digo: na história trabalhadora de um país escravocrata como o Brasil, dinheiro está intimamente atrelado a sofrimento. Trabalhar é sofrer. Trabalhar (de forma paga!) nunca pode estar ligado à diversão ou ao lúdico, especialmente se você não é um homem branco herdeiro.
Talvez isso já dificulte o processo de precificação num trabalho ligado ao lúdico e às artes. Um trabalho que é ligado a hobbies e não à carreira em algum momento te faz pensar: “eu trabalho desenhando, será que eu deveria cobrar caro por isso?”. O ódio às artes, aos artistas e aos especialistas fomentado nos últimos anos pela extrema direita só reforça essa pergunta. Porém, a real é: trabalhar com arte é... um trabalho. Ilustradores, artistas, desenhistas, designers, fotógrafos, etc. são trabalhadores, e como tal devem ser pagos (e bem pagos) pelo seu saber aplicado e pelo seu ofício.
Escolher o próprio preço é árduo porque é um vislumbre do quanto nosso trabalho vale — e às vezes, isso se confunde com nosso próprio valor, como se nós próprios também estivéssemos à venda. É um equívoco complicado de se desvencilhar, que eu só consegui elaborar na consultoria financeira com a Michele Alves da Ubunttu. Durante muito tempo, eu confundi valor com preço. Hoje, não mais. Como disse o divo Pedro Conti numa palestra: “eu vendo meu trabalho, mas minha arte é minha”.
Além de todos os sentimentos que envolvem cobrar pelo nosso serviço, entram na equação também dificuldades técnicas de precificação. No caso de design e ilustração, temos a escala de reprodução. Uma ilustração ou um logo é reproduzido de forma industrial milhares de vezes num piscar de olhos. São peças vistas por milhares de pessoas, que terão um valor agregado e especulado gigante. Quanto maior a reprodução de uma arte, maior o orçamento. Ou seja: não devemos considerar apenas o tempo de criação e estudo numa peça, mas também a escala de reprodução, que encarece o preço para o cliente. Aí o bicho começa a pegar. É preciso colocar na conta local de aplicação, mídias, proporção da empresa, quantidade de reprodução, direitos de uso, tempo de uso… pelamordedeus, é muito fator pra uma equação só!

Hoje recomendo aos meus alunos das aulas de design gráfico e ilustração um documento para se ter um parâmetro mínimo: a tabela de preços da ADEGRAF. Embora não seja perfeita* e já esteja defasada, é um ótimo choque de realidade para perceber, talvez pela primeira vez, quanto custa um trabalho profissional em design e ilustração no Brasil. Um trabalho profissional vendido para uma empresa, e não feito para sua tia que estava precisando de um logo no cartão de visitas. Eu lembro a primeira vez que vi esta tabela da ADEGRAF: “como eu vou cobrar isso tudo por um trabalho criativo? Eu nunca vou chegar nesses valores!”. Eu era estudante no meio da graduação, tinha quatro empregos (!) e mesmo assim ganhava pouco mais de um salário mínimo — a verdadeira pai do Chris do design kkkkk Eu era tão explorada que não entendia que estava sendo feito de otária todo dia. Hoje, após amadurecimento profissional e muito tapa na cara, vejo que a tabela da ADEGRAF é realmente um parâmetro de preços.
* Considero os valores da ADEGRAF condizentes com os preços pagos por empresas de São Paulo a profissionais (homens brancos) do sudeste do Brasil. Se analisarmos fatores como faixa etária, escolaridade, gênero e localidade, essa tabela muito provavelmente seria outra.
Esse amadurecimento profissional veio a duras penas entendendo o mercado e, sobretudo, exercitando minha imaginação. Quanto dinheiro é muito dinheiro? 5 milhões? 30 milhões?? Eu não tenho imaginação para chegar no número que é o lucro de uma empresa milionária. Lidar diretamente com pedidos de orçamentos feitos por agências de publicidade e empresas globais me faz pensar em como as empresas lucram em cima do meu trabalho, lucram em cima das ilustrações desenhadas por uma moça serelepe do Rio de Janeiro. Por essas e outras, eu digo que trabalhar no mercado de design e ilustração me radicalizou. Eu não quero ser a otária trabalhando para malandro. Eu quero ser a malandra ao sair de casa.
Afinal, não tem receita mágica para precificação. Devem ser considerados diversos fatores sobre o cliente, sobre o projeto, sobre o próprio profissional que mandará o preço. Algo é, entretanto, certo: não existe cobrar menos de R$300 em qualquer projeto profissional de design gráfico ou ilustração para empresas. Falo isso com tranquilidade, não importa em que “““fase do mercado””” você esteja lendo isso aqui. Vejo tabelas e indicações de preço que são inverossímeis com os gastos mensais de supermercado, ou com os gastos do pacote mensal de softwares que todo designer/ilustrador utiliza. R$200 num logo? R$10 numa comission? Quanto trabalho cobrado assim deverá ser realizado para se chegar a um salário mínimo? Se considerarmos então o salário mínimo sugerido pelo DIEESE, o cenário é ainda mais crítico. Cobra-se pouco por causa da ansiedade e medo de não conseguir pagar as contas, mas cobrar muito pouco é o caminho certo para burnout. É uma armadilha.
Eu cansei de armadilhas. E de ser a otária. E de ver outros colegas de profissão serem os otários. Porém, nem sempre consigo ser a malandra. Talvez até em cenários com orçamentos altos aprovados eu ainda seja a otária — afinal, qual o limite de uma empresa gigante? Talvez meu orçamento alto não seja ainda nem 10% do budget total do projeto. É uma caixa preta que os fornecedores terceirizados como eu dificilmente terão acesso. Infelizmente.
Orçar é como um treino: você exercita sempre que pode. Negocio cada vez mais, insisto em receber respostas de emails de orçamento, anoto minhas devolutivas (ou a falta delas) em tabelas, troco dicas e peço conselhos aos meus amigos de profissão (união da classe trabalhadora é imprescindível). Todo treino conta. Especialmente para os malandros. Todo dia sai um malandro e um otário de casa para fazer negócios. E amanhã eu espero ser o malandro.
Obrigado sempre pelos pensamentos pensantes, te admiro muito e cada dia vez mais ✨
Acredito muito na união dos profissionais, pois tento ser assim.☺️ e vejo que vc tem muita prática nisso. Tinha uma época que achava que ser agenciada resolveria muitos dos meus problemas. 😬 Aí um dia mandei uma mensagem pra você no Instagram e bem fofa e acolhedora falou sua experiência e de outros amigos com a questão. Achei tão legal que você foi acessível que percebi o quanto é especial ter essa união.