Viver após o sonho
Um pouco do processo sonhador e criativo da minha residência artística em Tóquio
Há um ano, em abril de 2024, eu embarcava para o Japão para realizar um dos meus maiores sonhos: criar, desenhar, projetar minha primeira exposição enquanto morava numa residência artística sediada numa antiga fábrica de arroz de 100 anos (!) em Tóquio. Um sonho tão grande que nunca pensei que poderia de fato realizá-lo. Até que o fiz.


Um sonho que eu me preparei anos para concretizar, um sonho que me fez aprender a sonhar. Houve o tempo que até mesmo sonhar me parecia inverossímil. Uma aposta impossível. Só quem veio de famílias simples e trabalhadoras conhece esse sentimento. Nesse sentido, até mesmo sonhar requer treino.
Porém, minha profissão se faz no sonhar. Quanto mais eu mergulho na minha carreira enquanto ilustradora e designer, mais eu percebo que estou projetando sonhos. Então, pouco a pouco, ao projetar sonhos dos outros (ou seja: de clientes), eu fui me permitindo e me dando a chance de projetar meus próprios sonhos.
O sonho de fazer uma residência artística no Japão veio na pandemia (meados de 2020), a época que eu mais precisava ativar a possibilidade de futuros melhores e realidades desejadas. Em andanças pela internet afora, descobri esse barato que é morar num lugar para criar projetos e expor sua visão de mundo enquanto artista. Encontrei residência artísticas dispostas pelo mundo todo, cujas inscrições estão disponíveis para qualquer um que tenha portfólio e consiga falar a língua local (ou inglês). Comecei a procurar informações de lugares assim ao redor do globo até que decidi concentrar minha busca em um país: Japão.

E por que o Japão? Como toda garota de 30 anos, eu cresci impressionada com os brilhos dos animes e o dinamismo dos mangás. Old do old que sou otaku. Para além de nostalgia do Toonami do Cartoon Network, o Japão tem um histórico milenar de artes gráficas, caligrafia e desenho. Eu estudo japonês há 4 anos, e desde que adentrei o mundo dos ideogramas (kanjis) meu amor ao desenho se aprofundou ainda mais. Minha pira é a reprodução, a beleza de uma matriz se tornar centenas ou milhares. E mais: uma das técnicas que mais utilizo em impressão é a risografia, desenvolvida no Japão. Daí veio outro sonho: imprimir risografia no próprio país que inventou a técnica.
A ideia da residência artística se juntou à comemoração de 10 anos de namoro com meu consagrado numa lua de mel japonesa. Dois coelhos com uma cajadada só que chama? Me apliquei para a vaga no Almost Perfect no final de março de 2023 e em pouco mais de uma semana tive a resposta do orientador. Senpai noticed me!! A residência artística em 2024 estava garantida. Nisso, Pedro e eu montamos um roteiro de viagem dos sonhos, incluindo tudo que sempre quisemos fazer no Japão: muito lamen, coisas de otaku, percorrer ruas dos nossos animes favoritos. O céu era o limite (e nosso orçamento também kkkk)









No total, vivemos 62 dias em terras nipônicas. Antes de morar durante 30 dias em Taito, eu passei outros 32 dias viajando pelo Japão. Comemorei meu aniversário num campeonato de sumô, fui duas vezes assistir teatro kabuki, andamos no lombo do Yoshi no parque do Mario Bros. na Universal Studios, vi um vulcão pela primeira vez na vida, comemos lamen num restaurante 24 horas de um dragão no Dotonbori de Osaka, vivenciamos dois terremotos, fotografei a yakuza num festival de verão, vi logos e ilustrações incríveis por toda parte, visitamos o museu e o parque do Ghibli, compramos amuletos de cavalos desenhados em Takayama, pernoitamos na vila patrimônio UNESCO em Shirakawago, fizemos amizade com uma mangaká, dormimos no subúrbio japonês em projetos de arquitetura cuja proposta é atrasar a morte, tomei banho num sentô tradicional. Muitos eventos canônicos para apenas um texto, e que foram me fervilhando de ideias e sonhos gráficos.
Após 30 dias de viagem, começou a residência artística. O Almost Perfect era sediado numa antiga fábrica de arroz construída logo após o terremoto de Kanto em 1923. Criada e dirigida pelos divos Luis Mendo (ilustrador, diretor de arte) e Yuka Mendo (estilista, musicista), o Almost Perfect funcionou por pouco mais de 5 anos, e recebeu artistas do mundo todo. Acredito que eu tenha sido a única brasileira. Escolhi o A.P. porque, além de estar na minha cidade dos sonhos, eu queria muito ter a orientação de um ilustrador para minha primeira exposição. O Luis tem ilustras lindíssimas no analógico e no digital, então foi o match perfeito.

O Almost Perfect ficava em Taito, um bairro que ainda resiste à gentrificação cosmopolita do resto da cidade de Tóquio. Taito é marcado por casas antigas, idosos mestres artesãos, restaurantes de soba tradicional do período Edo e templos xintoistas. Um Japão que resiste ao tempo onde todas as manufaturas são produzidas industrialmente na China. Para se ter ideia, em Taito há artesãos especializados em pregar botões, outros especializados em criar botões, e aqueles especializados em pintar botões. São tarefas muito específicas que você se pergunta: como essas profissões resistem aos nossos tempos? A economia criativa, juntas locais e o foco no comércio local são alguns dos fatores que fazem parte dessa resposta.
Eu morava no terceiro andar da antiga fábrica de arroz. Toda residência artística pressupõe colegas de residência, e eu dei a maior sorte: em Taito conheci o Sunwoo Kim, artista plástico sulcoreano, que morava no quarto do segundo andar. Nós alternávamos entre trabalhar no estúdio do segundo andar e no estúdio do primeiro andar. O Sun é um artista de mão cheia, já fez várias residências artísticas, e seu jeito calmo e inteligente foi ótimo para equilibrar minha energia caótica e espevitada.

O dia a dia na residência era calmo e excitante. Sun acordava às seis da manhã para fazer corrida e logo em seguida começava a pintar seus haikais visuais. Eu acordava às nove e já partia para os desenhos. Almoçávamos lamen do restaurante do senhorzinho na esquina, ou comprávamos marmita no mercadinho. À tarde, mais trabalhos, desenhos, projetos. Trabalhávamos até de noite, e aí jantávamos fora para passear por Taito ou pelos arredores de Akihabara e Asakusa. Nessas caminhadas vi garotas sonhadoras nos templos, placas de trânsito que mudaram minha vida, jovens falando “subarashi!!” pelas ruas. Eventos cotidianos que me alimentaram criativamente de forma sem igual.
Após tantos eventos canônicos vividos no Japão, eu estava com milhares de ideias efervescentes para minha exposição. Eram tantas que criei duas expos em uma: Graphic Diaries, Graphic Dreams. A parte Graphic Diaries mistura ilustração e fotografia analógica para recriar os momentos que vivi no Japão, enquanto a parte Graphic Dreams toma a realidade como ponto inicial para imaginar histórias e narrativas. Nesse projeto eu me permiti desenhar com meu coração mais que nunca. Foi a primeira vez que desenhei letterings em kanjis (Luiz e Yuka me falaram que fui a primeira e única residente do A.P. que fez isso) a partir do que ouvi pelas ruas do Japão e a primeira vez que utilizei minhas fotografias analógicas pareadas com minhas ilustras.




Ambas seções da minha expo foram impressas por mim em risografia tal qual sonhei. Após desenhar e projetar minhas artes no Almost Perfect, peguei a Supervia de Tóquio e fui para o Hand Saw Press passar dois dias imprimindo e sonhando com cores que nunca havia visto. Sonhar é bom, mas viver o sonho é ainda melhor!
A minha expo aconteceu durante os dias 24 a 26 de maio de 2024, tendo a festa de abertura no dia 25 de maio. Foram dias cheios de encontros com amigos brasileiros, artistas japoneses e artistas estrangeiros, designers, fotógrafos. Dias que até agora reverberam comigo e em mim.


Minha temporada no Japão foi uma experiência violentamente transformadora. O quanto aprendi, sonhei, desenhei nesses 30 dias em Taito não cabe no gibi. Mais do que nunca, viver após meu maior sonho me mostrou como o mundo é infinito, e meu coração se tornou mais ousado e destemido. Cada vez mais estou pronta para jornadas maiores e grandes sonhos. 💅
Que lindo o texto e consigo imaginar a dificuldade que foi resumir a sua experiência por lá! Me deu super vontade de fazer uma residência artística também e quem sabe lá no Japão também!
Paula, que texto lindo e gostoso de ler! Muito inspirador mesmo! Acompanhei sua jornada no japão pelo instagram, e foi muito bacana ver essa possibilidade de focar na arte, além de conhecer um outro lugar (e isso sempre é extremamente enriquecedor). Outro dia conheci uma moça que trabalha com gravura em metal, e ela passou três meses (!!!) numa residência na China. Ela disse que foi incrível se sentir profissional (e falou isso mesmo tendo mais de 10 anos de estrada), por poder focar, por estar com outros artistas incríveis, e não se preocupar se ia precisar vender o almoço pra comprar a janta. A única preocupação dela era lavar a louça.
Esses relatos são incríveis =) tô pensando em tentar algo assim também, em busca de residências. Obrigada pela inspiração <3